A RELIGIÃO
I
O paraíso da alma é a razão satisfeita; seu inferno a loucura irritada.
II
O Deus da razão é, ele próprio, a razão luminosa das coisas. O Deus da loucura é a razão obscura dos sonhos.
III
Dizer que Deus se revela loucura para confundir a razão, como se dizer que o sol se revela noite para confundir a luz.
IV
Deus se revela por leis e em leis que não mudam jamais. Ele é implacável porque não se irrita jamais. Não saberia perdoar porque jamais se vinga.
V
O mal não é mais que o aborto do bem. Pode-se morrer pela conseqüência do aborto e se a mulher o provocou por imprudência, já está bastante castigada.
VI
O diabo é a loucura atribuída a Deus. É Deus, que parece afirmar-se mau mediante um plenipotenciário surgido do pesadelo da loucura humana.
VII
O milagre é a loucura atribuída à natureza. A natureza não poderia infringir a menor das suas leis sem cair toda ela na demência.
VIII
Se um só grão de pó pudesse se mover contrariamente às leis da atração e da gravidade, a cadeia da harmonia universal se quebraria e nada do mundo subsistiria mais.
IX
A Bíblia é a filosofia dos antigos, escrita em enigmas e em parábolas é maneira dos poetas orientais.
X
A Cabala é a fórmula cifrada da hipótese divina. Os mistérios são os teoremas da sua álgebra. É simples como dois e dois são quatro, claro como as quatro regras da aritmética e obscura para os ignorantes como a tábua de logaritmos ou o binário de Newton.
XI
Deus é o grande silêncio do infinito. O mundo todo fala dele; e, para ele nada do que se fala representa tão bem como seu silêncio e sua calma eternas.
XII
A lei é rigorosa; é necessária; não pode não ser; não pode ser diferente do que é, dados os fenômenos do ser e da vida. Pois bem, o ser é; e, para dar-lhe uma causa é inútil imaginar outro ser. Porém há que reconhecer-lhe uma razão e esta razão é o que chamamos Deus.
XIII
Todos os males da alma humana vêm do temor e do desejo. As ameaças e as promessas são os grandes meios de corromper e de embrutecer os homens. O dogma que anuncia o privilégio e que ameaça com um castigo exorbitantemente monstruoso e sem fim às multidões ignorantes, não nem divino, nem humano, nem razoável, nem civilizado.
XIV
Desde o reino de Constantino até os nossos dias, o Cristianismo oficial não foi senão um ensaio cada vez mais desgraçado para conciliar as luzes do Cristianismo com as trevas do antigo mundo.
XVI
O Evangelho não é o dia, é uma bela noite cheia de resplendores crepusculares; é um céu cintilante de estrelas.
XVII
Deus é o espírito, e aqueles que de hoje em diante o adoram deverão fazê-lo em espírito e em verdade. Eis uma estrela fixa que aproximando, torna-se um sol. "Pai, perdoa-os, pois não sabem o que fazem"; eis aí a humanidade real que se mostra maior que a divindade fictícia. Não tens senão um Mestre que é Deus e sois todos irmãos; isto é um cometa que ameaça os sacerdotes e reis do velho mundo. Que aquele que esteja sem pecado, atire a esta mulher a primeira pedra; isto é o fulgor crepuscular do sol da justiça. Jesus não se apresenta a si mesmo como sendo o espírito da verdade; anuncia somente que este espírito virá.
XVII
O espírito da verdade explica tudo e não destrui nada. Explicar é transformar. Na natureza tudo se transforma, nada se destrui; o mesmo acontece na religião.
XVIII
No Éden frutificavam duas árvores; a árvore da ciência e a árvore da vida; a árvore da ciência é a razão e a árvore da vida é o amor que produz a fé. A razão sem a fé é a morte do coração. A fé sem a razão é a loucura criadora do inferno, é o aniquilamento do espírito.
XIX
A árvore da vida que é a da fé, não tem mais do que uma raiz e um galho. Tem suas primaveras e seus invernos. Tem folhas e flores que caem. Não digais que a árvore está morta quando se despoja; reverdecerá na primavera. Não intenteis cortá-la porque suas flores estão murchas, esperai que dê seus frutos.
XX
Foras das matemáticas puras, tudo não é verdadeiro senão proporcionalmente, relativamente e progressivamente.
XXI
Discutir com os loucos é insensato; contrariá-los ou mofar-se deles é inumano; somente necessário impedir-lhes de fazer dano.
XXII
Irritar-se contra a desordem é uma desordem; fazei a ordem e a desordem cessará.
XXIII
Proclamar altamente a razão em meio aos loucos é fazer um ato de loucura. Ter razão contra todos é estar errado ante a sociedade; eis aqui o que justifica a retratação de Galileu.